DISCURSO DE POSSE DEPUTADA ESTADUAL EDNA SAMPAIO
- Neusa Baptista
- há 6 dias
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Companheiras e companheiros, amigas e amigos, povo do meu estado de Mato Grosso.
Dirijo-me, em primeiro lugar, aos meus eleitores.
Como cuiabana e matogrossense, descendente de negros e indígenas, moradores ancestrais deste lugar continental chamado Mato Grosso, muito me honra a oportunidade de representar, neste momento, 16.488 votos espalhados em mais de 130 municípios.
Agradeço de coração pela confiança destes votos livres, conscientes e, desejosos de mudanças na política: por mais mulheres comprometidas com as causas humanitárias de nosso tempo. Agradeço cada mulher, cada homem jovem, adulto ou velho que fez de nossa campanha uma linda defesa da democracia e da presença de mulheres negras na política.
Vivemos um momento decisivo na história da humanidade. A vida no planeta está sob ameaça: as florestas ardem, as águas se envenenam, o clima se desestabiliza. E, junto à destruição do planeta, de nossa casa comum, assistimos — perplexos e indignados — à erosão das democracias e ao avanço de políticas cada vez mais desumanas.
Mas nós, que conhecemos nossa história, sabemos que a democracia nunca foi um presente — foi uma conquista forjada no sofrimento de povos inteiros, na resistência à guerra, à fome e à tirania. Após o horror da Segunda Guerra Mundial, o mundo ergueu a Carta dos Direitos Humanos como farol: mesmo ancorada em valores liberais, significou um avanço civilizatório inegável.
Afirmou que todos — sem exceção — têm direito à vida, à liberdade, à dignidade, à cidadania e à autodeterminação. Uma promessa de que “a guerra de todos contra todos” jamais seria naturalizada, e de que o Estado jamais esmagaria o indivíduo — o mais forte jamais aniquilaria o mais fraco. A Democracia é para todos, não apenas para a maioria.
Como servidora pública, sempre me coloquei nas lutas da classe trabalhadora, dos povos colonizados, das mulheres, dos negros e negras, dos camponeses e operários que deram substância à democracia. Décadas de greves, marchas, prisões e vidas sacrificadas para arrancar direitos das mãos dos poderosos. Por isso, não nos enganemos: a democracia é filha da luta popular. E os Direitos Humanos — um pacto civilizatório — são a síntese desse combativo legado que nos ensina que ser humano é ter direitos; é acessar aquilo que a sociedade produz coletivamente e, tantas vezes não é distribuído a quem produz.
O pacto civilizatório que deu origem à sociedade moderna está sob ataque. No Parlamento Nacional, a extrema direita impôs projetos que ferem o direito à vida e enfraquecem políticas públicas, ao mesmo tempo que criminaliza mulheres — como vimos em propostas que equiparam o aborto a homicídio ou suspendem direitos fundamentais. No plano estadual, Mato Grosso — um dos estados mais ricos do país — revela sua face excludente em dados dolorosos:
- Em 2023 e 2024, Mato Grosso teve a maior taxa de feminicídio do país: 2,5 mortes por 100 mil habitantes, contra 1,4 no Brasil. Foram 46 feminicídios em números absolutos. Já entre janeiro e maio de 2025, o estado registrou 17 casos, um aumento de 13% em relação ao mesmo período anterior. Há em curso uma guerra de homens misóginos contra a vida das mulheres.
- A violência contra pessoas LGBTQIA+ cresce também: em Mato Grosso, os registros de crimes homofóbicos saltaram de 315 casos em 2023 para 416 em 2024. No Brasil, em 2023, 257 pessoas LGBTQIA+ foram vítimas de mortes violentas — uma vida perdida a cada 34 horas.
- As mulheres constituem 50,2% do eleitorado mato-grossense, mas apenas 01 ocupa a titularidade de uma cadeira das 25 existentes. Aproveito aqui para saudar a Deputada Janaina Riva que embora num campo ideológico diferente do meu, é uma grande liderança mulher que tem meu respeito e admiração. Que nossas diferenças sejam menores que a causa na defesa das mulheres. Obrigada pela acolhida, deputada.
Verdade seja dita, a Democracia pela qual tanto lutamos, não tem incluído mulheres, pessoas negras, crianças e pessoas LGBTQIA+. Temos, portanto, uma Democracia muito restrita que sofre, neste momento, ataques, golpe e tentativa de golpes desde 2013, marco da entrada do movimento internacional da extrema direita no Brasil.
A política se transformou numa guerra sem precedentes. Os discursos de ódio e a mentira passaram a ser instrumentos de uma conduta sem qualquer ética pública, sem qualquer compromisso com a verdade, com a vida das pessoas. Nessa guerra discursiva que a extrema direita inventou para mobilizar a violência e, sufocar as consciências, as primeiras vítimas são as mulheres.
Este dia de hoje foi precedido de muitos outros dias de reflexão sobre o sentido deste momento na história que tenho construído a muitas mãos. Lembrei-me de toda a perseguição que sofri na Câmara de Cuiabá que começou logo após as eleições de 2022 que deu a mim a primeira suplência de deputada.
Como vereadora enfrentei a covardia dos métodos da extrema direita: mentiras, ataques a minha honra, à minha dignidade como pessoa humana, à minha família, às companheiras e companheiros que comigo resistiram e aos meus eleitores. Nunca vivi nestes 58 anos de vida, nada parecido com a violência que me foi imposta pelo Presidente da Câmara de Cuiabá e seus comparsas.
Enquanto patrocinava um verdadeiro linchamento moral para tirar o mandato de uma mulher, negociava propina utilizando as prerrogativas do cargo de presidente da Câmara. Segue afastado pela justiça, mas continua protegido pelos seus recebendo, inclusive, seu gordo salário pago pelos contribuintes. Contribuintes são sempre lesados por esquemas de compra de votos, sobre o qual o ex-presidente da Câmara também e investigado e pela 3ª. eleição consecutiva.
Mentir, enganar, confundir, repetir tantas vezes um absurdo até que pareça razoável, até que as pessoas acreditem, até que reforce o estigma, o preconceito racial de que todo preto ou preta é de fato, um morto de fome, um pobre coitado à espreita de alguma oportunidade para cometer o ilícito. O racismo é um pré-julgamento inconsciente que vem antes dos fatos, antes mesmo das palavras. A extrema direita tem a habilidade de ativar sentimentos odiosos como o racismo, o machismo, liquidando a verdade e a racionalidade.
Vivi um processo que desafiou minha capacidade de me reinventar e, para seguir em frente, é preciso dizer o que ainda precisa ser dito:
Quando um vereador assassinou um servidor público à queima-roupa e foi filmado, houve vereadores que o defendesse intransigentemente e, metade tentou salvar seu mandato. Ele era um homem branco e conhecia muita gente poderosa. Foi preciso pressão social para a única decisão possível: perda do mandato.
Quando um outro vereador chegou a ser preso em razão de investigação da polícia federal por envolvimento em lavagem de dinheiro e organização criminosa, vereadores e vereadoras não acharam que deveriam tomar alguma providência. Embora não fosse branco, era um homem da base do prefeito.
Quando o ex-presidente da Câmara, o mesmo que conduziu as minhas cassações, foi afastado do cargo por força judicial em razão das investigações sobre esquema de cobrança e pagamento de propina, a Câmara se recusou a abrir qualquer procedimento alegando falta de prova e apenas noticia em jornal. Ele é um homem branco inserido em algum poder.
Essa diferença de tratamento entre uma mulher negra que nunca cometeu crime e homens investigados pela justiça, são provas do machismo e do racismo estruturais. O único crime que cometi foi ter nascido mulher, negra, num estado lamentavelmente racista que impõe às mulheres muita violência e, 60% das vítimas de feminicídio são mulheres negras.
O crescimento da extrema direita e a perda da verdade como valor em nossa sociedade, nos coloca frente a um grande desafio civilizatório. Estamos diante de uma encruzilhada histórica. Ou com coragem nos levantamos para defender a convivência democrática, o respeito e amor a verdade e ao bem viver ou; retornaremos à barbárie, à lei do mais forte, onde os fracos não tem vez. Nesse caso, o Estado e suas instituições podem ser completamente capturados formas de organizações criminosas que já ocupam importante espaço na política.
Sou uma sobrevivente da violência política de gênero. É neste contexto que exercerei a condição de deputada nesta Casa Legislativa.
Uma casa que precisa se abrir para as mulheres, pois, em 190 anos apenas 11 mulheres titulares ocuparem suas cadeiras.
Este dado por si só é um espelho da profunda desigualdade entre homens e mulheres que precisamos combater.
Chego a esta casa depois de enfrentar uma verdadeira caçada à minha integridade física e psicológica, às minhas ideias, à minha resistência e à minha determinação de permanecer exatamente neste lugar que eu sei, não foi feito para mulheres como eu. Tentaram silenciar a voz de uma mulher negra, eleita e incômoda aos jogos de um poder covarde e truculento. Tentaram me assassinar politicamente, mas ... eu ainda estou aqui!
Deus não me concedeu o silêncio diante das coisas injustas, nem a passividade diante da violência. Ouso, sim, contrariar o machismo e o racismo que tentaram me aniquilar. Meu corpo negro, como todos os outros corpos colocados à margem do poder, seguirá lutando até o fim. Não se trata de uma escolha. Quem nasceu mulher, pobre e preta não tem escolha.
Os gritos violentos pra minha desonra em plenário, transmitido ao vivo pelo Youtube, ainda ecoam na minha cabeça, ainda me causam embrulho no estômago e, ainda ouço daquelas pessoas, homens e mulheres: xingamentos, depreciação, desqualificação, criminalização para justificar a atrocidade que ali se fazia contra uma única mulher. Eu vi a fúria daqueles que se amedrontaram com a minha presença. Senti o chicote nas costas, minha execração em praça pública, meu nome na lama, minha família destroçada. Minhas finanças arruinadas.
Sou frágil, como todo ser humano. E na fragilidade humana que me constitui tomei pra mim a missão de ecoar vozes que não podem mais se calar. Trago a resistência ancestral das mulheres que me antecederam, de todas aquelas que suportaram muito mais do que qualquer humano deveria suportar para que eu estivesse aqui, agora. Quando uma mulher se levanta ela sente o peso das correntes e, me levanto porque sou o sonho de minhas ancestrais.
Das que não puderam falar, das que foram silenciadas, estupradas, torturadas e mortas.
Minha passagem por este parlamento terá a missão de trazer, para a mesa deste banquete, a voz e a dor daquelas que já não podem gritar: da infância violada pelo descaso, das mulheres vítimas de feminicídio, das pessoas negras que sofrem violência racial todos os dias, das pessoas LGBTQIA+ massacradas pelo ódio, das populações indígenas e quilombolas expulsas de suas terras, dos trabalhadores e trabalhadoras explorados e invisibilizados.
Porque o poder não é legítimo se não servir à vida.
E eu estou aqui para lembrar — todos os dias — que nós não aceitaremos mais um Estado que escolhe quem é humano o suficiente para viver.
[Terceira Parte do Discurso]
E é impossível exercer este mandato sem denunciar, com toda a força da minha voz, a inadmissível situação dos feminicídios.
O feminicídio não é apenas um crime: ele é o espelho mais cruel de uma sociedade profundamente desigual entre homens e mulheres. Ele revela que, ainda hoje, as mulheres são submetidas ao escárnio da violência cotidiana.
Feito bicho acuado, muitas vezes nos escondemos, silenciamos, toleramos a agressão — não por consentimento, mas porque não temos para onde ir, porque não sabemos o que fazer, porque nos falta uma chance de viver em paz, de prosperar sem ser agredidas, violentadas e mortas.
No Brasil, a cada 17 horas uma mulher é assassinada por ser mulher. Não por outra razão qualquer. Unicamente por ser mulher. E o que isso nos diz sobre a sociedade que estamos aceitando construir?
Em vez de atacarmos as raízes dessa desigualdade, vemos crescer projetos que aprofundam a violência — como a decisão de militarizar as escolas.
Militarizar escolas é perpetuar a própria violência de Estado.
Uma sociedade que ama e respeita as mulheres não pode ter como projeto colocar armas e disciplina militar nos espaços que deveriam ensinar paz e convivência.
Escola é lugar de construir cultura de paz.
As forças policiais existem para reprimir e conter quando a vida ameaça outras vidas.
Educação existe para expandir horizontes, cultivar o respeito e formar cidadãos capazes de transformar o mundo.
Precisamos cuidar das escolas, apoiar os professores, ouvir os pais, investir em ciência, em cultura, em arte.
As escolas públicas — destinadas aos filhos e filhas dos trabalhadores mais pobres — não podem ser transformadas em zonas controladas pela polícia.
Escolas foram feitas para a paz e para o respeito à diversidade.
Forças militares foram criadas para a guerra.
E em toda guerra, a história nos mostra: mulheres e crianças são sempre as primeiras vítimas.
Se queremos romper o ciclo da violência, temos que começar pela raiz: garantindo que nossas meninas cresçam sem medo e que nossas mulheres vivam para envelhecer — livres, seguras e respeitadas.
Diante da matança de mulheres, e da perigosa possibilidade de a sociedade naturalizar essas mortes, minha presença nesta Casa quer fazer uma profunda reflexão sobre qual é, afinal, o papel do Poder Público — em todas as suas esferas — na defesa da vida das mulheres? Qual é o papel da sociedade na defesa das vidas das mulheres?
Colegas deputados, deputada, não se trata apenas de indignação momentânea. Trata-se de convocar a sociedade inteira a olhar para este problema como ele realmente é: um fracasso coletivo de garantir o direito mais básico — o direito de viver às mulheres.
Por isso, anúncio que promoverei audiências públicas para que possamos ouvir mulheres, famílias, especialistas, organizações sociais e autoridades sobre o que está acontecendo. Quero que este parlamento escute, sem filtros, o grito de quem vive sob o medo e a ameaça constante.
E, mais do que ouvir, apresentarei um pedido de CPI nesta Assembleia Legislativa, para investigar de forma ampla e rigorosa como as diferentes esferas de governo — federal, estadual e municipal — têm cumprido suas obrigações constitucionais na defesa da vida das mulheres e no combate às desigualdades de gênero.
Não podemos mais nos contentar com estatísticas frias. Precisamos entender as causas, identificar as falhas e, diante dessa compreensão, propor caminhos concretos de políticas públicas que protejam nossas vidas em todos os espaços onde temos o direito de estar: nas ruas, no trabalho, nas escolas, nas casas, na política.
Precisamos acreditar que um outro futuro é possível, mas é necessário começar a construí-lo. Sonhamos com um estado onde meninas caminhem sem medo, onde mulheres vivam para envelhecer com dignidade e onde ninguém precise morrer para que outros vivam. Um estado onde a diversidade seja celebrada, onde a política seja instrumento de justiça, e onde a vida — toda vida — seja protegida como bem supremo. Esse é o horizonte que nos move e é por ele que convido cada pessoa, cada comunidade, cada liderança, a se somar a esta luta. Porque a mudança que queremos só será real se for construída por todos que habitam este pedaço de chão chamado Mato Grosso.
Por fim, quero reafirmar que não estou na política apenas para sobreviver e resistir, eu vim para que possamos viver.
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