Somente 17% dos 5.570 municípios brasileiros aderiram ao Sistema Nacional de Cultura, que tem entre seus instrumentos o plano municipal de cultura. A capital aderiu ao SNC desde 2015 e só em 2019 criou a lei do Fundo Municipal de Cultura.
O alto grau de conhecimento técnico necessário para fomentar a política municipal de cultura foi um dos desafios discutidos durante a audiência pública realizada pelos vereadores Edna Sampaio (PT) e Mário Nadaf (PV), nesta sexta-feira (25), na Câmara Municipal. O evento contou com a participação de representantes da classe artística, produtores culturais e gestores do setor.
Um dos debatedores, o pesquisador e coordenador adjunto da seção Mato-grossense do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro, Renato Fonseca de Arruda, destacou que a institucionalização do setor vem ao encontro dos anseios dos trabalhadores da cultura e tem sido objeto de discussão nos últimos 20 anos.
“Ainda não conseguimos implementar os sistemas de cultura. Temos a adesão e Mato Grosso está em quinto lugar no rol dos estados que mais aderiram ao Sistema Nacional de Cultura, no entanto, quando analisamos a implementação, vemos que isso não se concretiza, pois exige formação, qualificação técnica específica, a qual a nossa população ainda carece e isso é muito delicado, pois observamos isso em nível local e também em nível nacional”, comentou..
Para ele, o maior desafio para quem trabalha com patrimônio, cultura e educação é fazer a militância diária na preservação dos saberes e fazeres não assistidos pelas políticas públicas.
“O plano municipal de cultura tem diretrizes e premissas que merecem ser observadas. É um processo de planejamento político e técnico, em que a participação não pode ser meramente formal e o poder público precisa garantir e fornecer instrumentos para isso. É louvável e eu parabenizo a Câmara pela iniciativa da audiência pública, mas chamo a atenção do poder executivo para que crie também outros espaços de participação popular”.
O secretário municipal de Cultura, Aluízio Leite, destacou o compromisso da gestão em realizar o plano municipal de cultura.
“A partir do início do ano, ouvindo as experiências bem sucedidas de outros municípios, aprendemos um pouco sobre como deve ser o processo de construção de nosso plano municipal de cultura. Já está na procuradoria a proposta para se fazer um chamamento público. Queremos que venham parceiros experientes para nos ajudar a construir um plano participativo e democrático”, disse. "Queremos ser cobrados, ouvir as vozes das ruas, pois a Secretaria de Cultura tem que ser uma caixa de ressonância do setor cultural na administração municipal”, ressaltou..
Para Nadaf, a criação deste instrumento é necessária para a cultura. “Pela primeira vez, nossa capital terá o plano municipal de cultura, que será construído de maneira republicana, participativa e democrática. Por exigência de diversos segmentos, que caminharam sem este planejamento e por determinação, vontade e compromisso político da gestão, ele será construído com a participação direta da população. Nosso papel enquanto vereadores é proporcionar este debate. O plano municipal de cultura terá vigência de 10 anos, sendo assim uma política para o setor cultural e não uma política da gestão e isso demonstra seriedade e compromisso”, disse.
A vereadora Edna Sampaio (PT) destacou o fato de as culturas terem sido hierarquizadas ao longo da história, com a desvalorização das manifestações culturais africanas e indígenas, consideradas, durante muito tempo, culturas inferiores, e enfatizou a importância do plano municipal de cultura para a valorização das manifestações culturais marginais.
“Neste momento em que também vivemos a crise da cultura, das artes, onde as pessoas estão sendo impedidas de produzir a sua expressão artísticas e movimento extremamente conservadores condenam esta e aquela expressão artística, ainda com todas as dificuldades, tivemos a aprovação da Lei Paulo Gustavo, que vai injetar quase quatro bilhões para estados e municípios investirem em cultura”, disse.
“Cuiabá é uma cidade extremamente rica, que guarda suas tradições, como cururu e siriri, mas tem outras artes que precisam ser incluídas, como os artistas do rap - com sua capacidade de rima, produção textual e oralidade que impressiona -, um tipo de arte marginal, que também deve ser trazida como expressão do nosso povo. A arte é o que nos define como sujeitos e como pessoas e nunca foi tão importante invocar a nossa humanidade, construir utopias que a humanidade sempre construiu”.
A parlamentar salientou que vivemos em um momento de extremo egoísmo,destruição, deletério sobre as vidas e que culturas marginais e jovens estão sendo completamente excluídas, assim como a população negra e LGBTQIA+. “Quero parabenizar cada um e cada uma pelo que tem produzido, como artista, produtor cultural ou gestor de políticas culturais. É muito importante e histórico este momento”, avaliou.
Demandas
“O plano municipal de cultura não é um pedido meu, mas do setor, há mais de 20 anos. A magia acontece quando construímos a base e esta base nós não temos. Precisamos também falar do Fundo Municipal de Cultura, que não pode ficar preso à fonte 100, às outras secretarias. Precisamos de um fundo independente e realmente fazer o CPF da cultura funcionar, disse a produtora cultural Silvana Córdova, presidente do Movimento Vambora, uma associação cultural que agrega os mais diversos segmentos artísticos.
“Queremos estar presentes em toda a discussão sobre políticas públicas, e estar aqui dando visibilidade a esta comunidade é dizer que queremos uma cidade que pense nas pessoas. Precisamos pensar nesta inclusão, já que a comunidade LGBTQIA + está em todas as artes: no teatro, na música, no cinema e fazemos e somos construídos a partir da cultura. Vamos estar nas conferências, debates, construindo a cultura a partir da nossa visão como pessoas que pagam seus impostos e precisam ter vida na cidade, que só tem vida quando inclui a todas as pessoas”, disse Clóvis Arantes, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBTQIA+ em Mato Grosso.
“Estamos desde 2017 com este grupo, que é integrado em boa parte por mulheres da área da educação. No plano municipal de cultura, deveriam ser priorizados os projetos culturais desenvolvidos nos bairros que, muitas vezes, são de grande valor, mas são esquecidos pelo poder público”, disse Marli Costa, líder do Grupo de Siriri Buriti do Cerrado, da região do bairro Primeiro de Março.
“Trabalhamos com o lambadão, o rasqueado e os serviços sociais, com o resgate da nossa cultura, pois o lambadão ficou um pouco esquecido. Nossa classe é uma das maiores geradoras de renda, os eventos sustentam muitos pais de família e foi o que mais sofreu com a pandemia. Ficamos dois anos parados e agora estamos retornando os trabalhos com o projeto de ter dez pontos de aulas de lambadão na cidade. Tudo o que vier para nos beneficiar será bem vindo“, disse Vlademir Reis, coordenador do grupo Lambadeiros de Elite e vice-presidente da Associação Mato-grossense de Cultura.
Nomeada Rainha do Samba há 21 anos e há 48 anos trabalhando com atividades culturais, a dançarina Margareth Xavier aponta a necessidade de valorizar a cultura acima de todas as demais políticas.
“Todos os setores anseiam de que se apresente algo novo, pois falar todos falam. Mas, a partir do momento em que se tenha um planejamento e se execute, mesmo que não seja para toda categoria, já é um grande passo. Um país que investe em cultura e incentiva os ativistas culturais não precisa investir em segurança, em presídios. A educação, o berço cultural vem antes da sala de aula e o dia que um gestor tiver esse olhar eu espero estar viva para ver”, disse.
O próximo passo será o encaminhamento do relatório da audiência ao Conselho Municipal de Cultura e ao segmento para a organização da Conferência Municipal, que será o primeiro passo para a elaboração do plano municipal de cultura.
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